sábado, 20 de dezembro de 2025

Memória de Elefante ( 04/Set/25)

Nirvz

 Hoje foi mais um dia de médico, psiquiatra dessa vez. Eu sempre acho mais difícil me abrir com psiquiatra do que com psicólogo. Psicólogo você pode florear o papo, inventar umas voltas, falar de quando era criança, do dia em que ganhou um PlayStation 1, de uma tarde qualquer que deu certo. O psiquiatra não quer saber disso. O psiquiatra é prático. Quer saber se você dorme, se pensa em se matar, se a cabeça pesa. Você fala, ele escuta, escreve umas palavras indecifráveis, receita a dose. É quase um balcão de peças de reposição.

Foi a primeira consulta, então acabou rápido. Falo dos medos, respondo se já tentei me matar, ele aumenta a dose do remédio e pronto. Já tô na porta de saída. Olho pro lado e o zoológico tá ali, quase acenando. Parece convidativo, como se dissesse vem, entra, lembra.

Fazia anos que eu não pisava lá. Uma das últimas vezes em que fui, eu tinha 13 anos, estava com minha mãe e o Derek. Dois fantasmas que me acompanham sem fazer barulho, mas que voltam quando querem. O Derek se foi pouco depois daquele passeio. Um ano antes da minha mãe. E eu senti os dois comigo de novo quando atravessei a entrada, como se a memória puxasse pelos ombros.

Entrei e a primeira coisa que vi foi o museu, com a fonte na frente. Fiquei parado um segundo, lembrando das fotos antigas, eu pequeno de calção curto, minhas irmãs maiores do lado. Quase dava pra sentir a água respingando de novo, mas só ficou a lembrança impressa em papel barato.

Segui e encontrei os papagaios. Gosto de bicho que fala, sempre gostei. Eles gritam qualquer besteira e parece que estão tentando puxar assunto, como se a solidão não fosse definitiva.


Mais à frente, o tigre. Inquieto, andando em círculos na água rasa, tentando se refrescar. Olhar de bicho preso, cansado, mas ainda com raiva. Eu fiquei olhando como quem reconhece o mesmo cansaço no espelho.

E então, atrás de mim, estava o Sandro. O elefante de sempre. O mesmo de quando eu era criança. Fiquei olhando pra ele como quem reencontra um velho amigo. O tempo passou, minha mãe se foi, o Derek também, mas o Sandro continuava ali. Pesado, imóvel, como se carregasse nos olhos tudo o que eu perdi. Era estranho e ao mesmo tempo reconfortante, parecia que alguém tinha ficado para segurar a ponta da memória.

Foi nesse silêncio com ele que a lembrança voltou. Eu com a câmera na mão, filmando minha mãe, e ela parada, achando que era foto. Posando, ajeitando o cabelo, rindo meio sem jeito. Uma cena simples, mas hoje vale mais do que qualquer coisa. A fita se perdeu pra sempre. Nunca mais vou ver. E é doido perceber que não lembro mais da voz dela. Como pode esquecer a voz da própria mãe? Uma coisa que deveria estar grudada em mim pra sempre, e sumiu.

O Derek também estava lá, rindo dos macacos, gargalhando alto, como se nada fosse problema. Eu me sentia protegido. Hoje só restava o Sandro, velho conhecido de tantas idas, sobrevivente do meu passado.

É assim: a ausência se esconde, mas sempre encontra um jeito de voltar. Você sai de uma consulta qualquer e, do nada, tá no zoológico outra vez. Tá com a câmera na mão, a mãe posando, o Derek gargalhando. Só que agora só existe a lembrança. Só o elefante continua.

Voltei pra casa com a receita no bolso e a saudade pesada. Mais um remédio pra tentar ajustar a química, mas não existe dosagem pra memória. Então escrevo. Talvez seja só um jeito de conversar com os mortos sem parecer louco

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O Desconforto Da Sorte (02/Set/25)

Nirvz

 Mais uma terça-feira, seis da manhã. A vida gosta de repetir os erros, mas dessa vez ela errou o erro e me deu sorte. E sorte, você sabe, é mais perigosa que azar.

Acordei sem ressaca de sono, cheguei no hospital e não tinha fila. O balcão parecia um mercado de madrugada, só os funcionários e o cheiro de limpeza. Consulta? Fui o primeiro. Remarcar? Três pessoas na frente.

O maior tempo que perdi foi por ter chegado cedo demais. Sorte demais. Esse tipo de coisa me deixa mais desconfortável do que se tivesse vinte desgraçados tossindo antes de mim. Porque a gente se acostuma com a tortura, não com o milagre.

Enquanto esperava, liguei meu cinema particular: celular, fone e Jackie Chan. O mesmo filme da semana passada. Dessa vez vi quase inteiro. Talvez seja isso a felicidade, repetir o mesmo soco até cansar.

Na consulta, o papo era sobre rotina. Que quebrar rotina não mata, que pensar em si não é egoísmo. Eu ensaio perguntas, mas nunca faço. Talvez porque não quero ouvir a resposta. Às vezes entender a dor é como cutucar o buraco do dente. Alivia? Só até sangrar mais.


Semana passada fiquei meio afundado. Escrevi três textos e engavetei todos. A ansiedade tem esse efeito colateral que ninguém fala: deixa a memória uma merda. Você escreve e esquece. Você vive e esquece.

Em casa tem a Amora. Cachorra nova. Mistura de todos os cães que já amei e morreram. Nunca me acostumei a falar essa palavra, morte. Ela pesa, engasga. Então eu prefiro dizer que viraram estrela. Parece infantil, mas é o que dá pra dizer. Amora é uma das poucas coisas boas dos últimos meses. Falei dela na terapia. Disse que me vejo nela. Isso dá um texto inteiro, mas não hoje.

Tenho lido gibis. Eles salvam. Lanterna Verde, Constantine. O primeiro acredita na força da vontade. O segundo fuma, bebe e engana demônios. No fim, acho que sou mais o segundo: perdido, irônico e tentando ganhar tempo com o inevitável.

Também comecei a ver Reply 1988, um dorama sobre um grupo de amigos nos anos 80. É bonito. Parece que eu faço parte daquele grupo. Eles riem, brigam, fazem besteira. Eu só assisto e finjo que não tô sozinho.

E fora isso, tudo igual. O mundo não mudou, só minha sensação de estranheza diante de um dia que não me bateu. Como diria o Kurt Cobain naquela música : I miss the comfort in being sad.

E talvez seja isso. A gente estranha a sorte porque já se acostumou demais com a dor.

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Nunca aprendi a me despedir (23/Agp/2025)

Nirvz

 Tava frio e eu odiava. frio não é só temperatura, é prisão. cada casaco é mais uma parede em volta de mim. eu nunca me senti à vontade com blusa de frio, parece que o corpo vira um pacote mal embalado. aí chegou o calor e, pelo menos, ele não disfarça nada. o calor não inventa. ele só pesa na pele, pede um ventilador velho que range no canto, e com isso já dá pra viver sem teatrinho.

mas a dor no couro cabeludo continua. às vezes parece física, às vezes mental, como se alguém cutucasse por dentro tentando sair. coço, viro pro outro lado, nada resolve. terça tem consulta, depois de quinze dias sem psicólogo. já me imagino tentando explicar e soando idiota, porque não tem palavra pra dor que não escolhe endereço.


essa semana vi um documentário do ozzy. numa parte ele disse que nunca aprendeu a se despedir do que ama, pessoas ou coisas, não faz diferença. e eu entendi. também não sei soltar. só que, diferente dele, eu não vejo problema em segurar. é assim que eu caminho: repetindo discos, filmes, piadas, voltando sempre pros mesmos pontos. não é preguiça nem covardia, é só o jeito que encontrei de estar no mundo. gosto da previsibilidade. gosto de saber onde o riso vai cair, onde o refrão explode, onde a cena acontece. tem gente que chama isso de estagnação, eu chamo de companhia.

ozzy segue berrando nos meus fones como um profeta bêbado, e agora a hayley williams entrou de vez, trazendo um pouco de luz no meio do barulho. fico entre os dois, um me derrubando, a outra me segurando, e nesse vai e vem eu empurro os dias. queria ler mais, ver mais, mas não me culpo quando acabo voltando ao que já conheço. é isso que me ancora quando tudo parece fora de lugar.

talvez por isso eu prefira o calor. mesmo incômodo, ele me deixa livre. não preciso carregar nada além de mim. e a dor segue aqui, como vizinho chato que não cala, esperando a consulta de terça. até lá eu deixo o ventilador chiar, rio das mesmas piadas, escuto as mesmas músicas e sigo.

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As 17 músicas da Hayley e um copo morno de esperança (14/Ago/2025)

Nirvz

 Acordei cedo, mas dormi tarde. Essa matemática torta que não fecha e ainda cobra juros no corpo. Cara amassada, aquela promessa de que hoje vai ser diferente já com cheiro de mofo. Fui pra academia, não pelo ferro — pelo fone. Templo de suor e rotação aleatória.

Escutei as novas da Hayley Williams. Dezessete faixas. Número torto, do jeito que eu gosto. Melhor lançamento do ano, no meu país de um morador só. Triste como fita velha dos anos 90, mas com um sorriso cínico no canto da boca, aquele que diz que a felicidade existe, sim, mas está sempre ocupada. As músicas passam a mão no meu cabelo e, no mesmo segundo, me empurram da calçada. Eu agradeço. É bom apanhar de algo que pelo menos tem melodia.

Fim de tarde me quebra no meio. O céu fica amarelo e eu fico sem assunto. Passou das seis e começa a mordida no calcanhar. Sinto a solidão chegando de coleira solta, igual vira-lata atravessando avenida sem olhar pros lados. Ninguém chama pelo meu nome. Luz acesa na janela dos outros, eu aqui, lâmpada que pisca e não queima de vez.

Jantar é miojo. O herói de todas as cozinhas cansadas. Três minutos de esperança e uma poeira de pozinho que promete sabor de galinha que nunca conheceu galinha. Refrigerante quente, porque nem o gelo quis ficar. Como olhando pro nada, o nada olha de volta, nós dois entendemos o contrato.


Preciso beber mais água. Dizem que resolve metade da vida. Eu até tenho garrafinha, aplicativo, meta com gráficos que sobem e descem como se fossem ações da minha saúde. Mas minha vontade evapora antes da primeira metade do copo. Ainda assim, eu tento. Tento do jeito torto: esqueço, lembro, tomo um gole, me elogio, depois abandono como quem larga uma planta no quintal e reza pela chuva. Vamo tentando, que é o verbo preferido dos fracassos que ainda respiram.

Penso nas músicas de novo. Aquelas guitarras com o joelho roxo, aquela bateria que parece correr atrás do próprio rabo, a voz dizendo “vai” e eu indo, meio rindo, meio tropeçando. Se tristeza tivesse manual, seria isso: uma faixa com refrão bom e versos que doem, mas não matam. A vida deveria vir com encarte, letras e acordes. Veio só o ruído. A gente inventa o resto.

Daqui a pouco a noite se ajeita na cadeira e pede silêncio. Não prometo nada pra ela. Amanhã talvez eu acorde cedo e durma cedo, talvez eu faça tudo errado de novo. O mundo gira como esteira de academia, você corre e continua no mesmo lugar, só que mais suado. Eu corro, escuto, volto pra casa, esquento a água, mexo o garfo, falo sozinho. No final, deixo o copo vazio em cima da pia como quem deixa um pedido.

Se tiver sorte, acordo com ele meio cheio. Se não, tudo bem. A gente segue, feito cachorro magro, brigando com o vento, procurando um carinho que dê pra levar no bolso. Enquanto isso, eu aperto o play, engulo o sal, bebo um gole morno do que tiver, e empurro o dia com o ombro. Dá pro gasto. E quando dá pro gasto, já é quase luxo.

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No meu coração fiz um lar (11, Ago, 2025)

Nirvz

Começo a semana já cansado. Nem comecei e já parece que acabou. Segunda tem esse peso estranho. Pressa demais pro meu ritmo.

Hoje cedo botei Chico Buarque. Eu sei… Não devia. Ele canta bonito demais. Bonito que dói. Mas sempre mexe em gavetas mentais que eu não queria abrir.

Mais tarde, trilha do Sítio do Picapau Amarelo de 2001. Primeira nota e minha mãe estava ali. Inteira. Rindo. Fazendo café. Perguntando se eu já comi.

A saudade não bate na porta. Ela só entra. Senta no sofá. Fica. A gente acha que se acostuma. Mentira. Não acostuma. Nem chorar mais eu choro. O nó na garganta secou.

Ultimamente tenho ouvido Ozzy Osbourne. Ele me traz uma saudade estranha. De algo que não sei o que é. Ou sei. Saudade da minha mãe. De cada cachorro que já se foi: Jaque, Nico, Pimpim, Cookie, Brutus.

A pior parte de estar vivo é a solidão. Não a de não ter gente por perto. Mas a que sobra mesmo quando tem. O buraco que ninguém preenche. A soma de todas as ausências.

Amanhã tem psicólogo. Talvez eu fale. Talvez não. Por enquanto, me agarro na ideia dos vinis que estão pra chegar. Pequenas esperanças, como boias num mar que não para de puxar pra baixo. A gente sabe que não salvam. Mas segura mesmo assim.

Cada disco é uma janela. Num lugar onde nada se perde de verdade. E aí lembro do que a Cássia canta em No Recreio: "No meu coração fiz um lar. O meu coração é o teu lar."

Talvez seja isso. Eu só esteja tentando manter todo mundo que eu amo morando aqui dentro. Mesmo que só na lembrança.

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Cadeira Dura, Chá Nenhum (5, Ago, 2025)

Nirvz

 acordei às cinco e meia da manhã, maldizendo deus, o despertador e a minha própria existência. tomei um banho pra ver se lavava o cansaço, mas era cedo demais até pra esperança.

Não comi nada. Só fiquei com a ideia vaga de um chá quente que nunca fiz. Dessas vontades que servem mais pra lembrar que a gente tá falhando até nas pequenas coisas.

saí de casa antes das sete. a rua tava quase tão escura quanto fria, o sol nem tinha decidido se ia aparecer. cheguei no hospital e ele já tava cheio, claro. todo mundo sempre chega antes, como se a pressa adiantasse a dor.

sentei no canto mais sujo que achei. do lado, um sujeito magro, rosto chupado, pulseira vermelha no braço: hiv positivo mas o desgraçado sorria. um sorriso calmo, sincero. como se ele soubesse de algo que a gente não sabe. como se estivesse em paz. aquilo me deu raiva e inveja ao mesmo tempo.

mais adiante, um velho numa cadeira de rodas xingava tudo — o tempo, as filas, as paredes, a vida. mas aí passou uma enfermeira com o cabelo preso e o cheiro de desinfetante. e o velho abriu um sorriso. não desses completos, mas um sorriso mesmo assim. porra. às vezes é só isso.

fui atendido às nove. falei com o psicólogo sobre o nada. sobre o tudo. sobre acordar cedo pra existir e não saber pra quê. ele ouviu, anotou, fez aquele som de “uhum” que eles treinam na faculdade. não salvou minha vida. mas também não piorou. saí de lá igual entrei, talvez um pouco mais leve. ou só mais conformado.

o mundo é esse hospital: cheio, barulhento, impessoal. e mesmo assim, de vez em quando, alguém sorri. vai entender.

Depois fiquei, sentado de novo, esperando para marcar o retorno. Vinte minutos vendo o tempo escorrer por uma parede suja. No fone, um vocalista emo crescido canta sobre ver as coisas de outro ângulo, e o ventilador no teto range como se estivesse prestes a cair e matar alguém. Talvez eu.

Talvez esse seja o fim mais coerente possível pra essa terça-feira.

Mas não caiu. Nem eu.

Ainda tô aqui.

Porra.





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