Hoje foi mais um dia de médico, psiquiatra dessa vez. Eu sempre acho mais difícil me abrir com psiquiatra do que com psicólogo. Psicólogo você pode florear o papo, inventar umas voltas, falar de quando era criança, do dia em que ganhou um PlayStation 1, de uma tarde qualquer que deu certo. O psiquiatra não quer saber disso. O psiquiatra é prático. Quer saber se você dorme, se pensa em se matar, se a cabeça pesa. Você fala, ele escuta, escreve umas palavras indecifráveis, receita a dose. É quase um balcão de peças de reposição.
Foi a primeira consulta, então acabou rápido. Falo dos medos, respondo se já tentei me matar, ele aumenta a dose do remédio e pronto. Já tô na porta de saída. Olho pro lado e o zoológico tá ali, quase acenando. Parece convidativo, como se dissesse vem, entra, lembra.
Fazia anos que eu não pisava lá. Uma das últimas vezes em que fui, eu tinha 13 anos, estava com minha mãe e o Derek. Dois fantasmas que me acompanham sem fazer barulho, mas que voltam quando querem. O Derek se foi pouco depois daquele passeio. Um ano antes da minha mãe. E eu senti os dois comigo de novo quando atravessei a entrada, como se a memória puxasse pelos ombros.
Entrei e a primeira coisa que vi foi o museu, com a fonte na frente. Fiquei parado um segundo, lembrando das fotos antigas, eu pequeno de calção curto, minhas irmãs maiores do lado. Quase dava pra sentir a água respingando de novo, mas só ficou a lembrança impressa em papel barato.
Segui e encontrei os papagaios. Gosto de bicho que fala, sempre gostei. Eles gritam qualquer besteira e parece que estão tentando puxar assunto, como se a solidão não fosse definitiva.
Mais à frente, o tigre. Inquieto, andando em círculos na água rasa, tentando se refrescar. Olhar de bicho preso, cansado, mas ainda com raiva. Eu fiquei olhando como quem reconhece o mesmo cansaço no espelho.
E então, atrás de mim, estava o Sandro. O elefante de sempre. O mesmo de quando eu era criança. Fiquei olhando pra ele como quem reencontra um velho amigo. O tempo passou, minha mãe se foi, o Derek também, mas o Sandro continuava ali. Pesado, imóvel, como se carregasse nos olhos tudo o que eu perdi. Era estranho e ao mesmo tempo reconfortante, parecia que alguém tinha ficado para segurar a ponta da memória.
Foi nesse silêncio com ele que a lembrança voltou. Eu com a câmera na mão, filmando minha mãe, e ela parada, achando que era foto. Posando, ajeitando o cabelo, rindo meio sem jeito. Uma cena simples, mas hoje vale mais do que qualquer coisa. A fita se perdeu pra sempre. Nunca mais vou ver. E é doido perceber que não lembro mais da voz dela. Como pode esquecer a voz da própria mãe? Uma coisa que deveria estar grudada em mim pra sempre, e sumiu.
O Derek também estava lá, rindo dos macacos, gargalhando alto, como se nada fosse problema. Eu me sentia protegido. Hoje só restava o Sandro, velho conhecido de tantas idas, sobrevivente do meu passado.
É assim: a ausência se esconde, mas sempre encontra um jeito de voltar. Você sai de uma consulta qualquer e, do nada, tá no zoológico outra vez. Tá com a câmera na mão, a mãe posando, o Derek gargalhando. Só que agora só existe a lembrança. Só o elefante continua.
Voltei pra casa com a receita no bolso e a saudade pesada. Mais um remédio pra tentar ajustar a química, mas não existe dosagem pra memória. Então escrevo. Talvez seja só um jeito de conversar com os mortos sem parecer louco




